Manu Lacernet adapta magistralmente o romance de Philippe Claudel em uma narrativa gráfica que define o mal como produto de fobias humanamente autorreferenciadas.
Já me peguei encarando no espelho o meu duplo duvidando ser o que de fato via e por vezes minha introspecção defensiva não retribuía o olhar da bizarra figura, o que me fazia desistir do confronto visual que prenunciava um tipo de fobia do EU, uma desumanização expelida da minha própria imagem (efeito Troxler?), quase um “exorcismo” auto infligido. Quero contextualizar aqui o poder das fobias que ecoam traumas e como estas “sequelam” nossas relações psicossociais. Dito isso, exalto a interpretação literária de Manu Lacernet na adaptação gráfica do paranoico romance original de Philippe Claudel no seu O Relatório de Brodeck, uma obra de fortes reflexões pautada em xenofobia, paranoia, traumas e medos inerentes do existir.
A narrativa nos traz à tona os pavores e feridas de um pós-guerra que reverberam instintos de autopreservação, estruturando perigosas bandeiras “identitárias” de microgrupos que suprimem a singularidade do EU em ações irracionalmente mimetistas. O plot da HQ está sintetizado na paranoia de um pequeno vilarejo e no bárbaro assassinato de um “estrangeiro” por homens incapazes de lidarem com suas fobias. Brodeck é o escriba local incumbido de elaborar um relatório que seja “favorável” aos executores em uma espécie de pós verdade registrada . A não cumplicidade decorrente da inverdade dos fatos remontam questionamentos digressivamente antropológicos, fazendo Brodeck adentrar os motivos de sua designação que culminarão em uma poderosa conclusão expositiva do “reflexo” (ou representação imagética) das origens do mal sob fobias afrontadas no processo antinatural de desumanização do SER, explicitando consonâncias consciências que se somam, gerando a acachapante definição de “A Multidão” citada na obra que ao fim se autorreferencia como essência da subjetividade humana.
Talvez lidar com nossos demônios seja este embate simbólico de racionalização singular do medo ante a uma histérica cooptação deturpada de influenciadores signos alheios. Enquanto profunda experiência literária, uma HQ a ser eternamente digerida pelos questionamentos de humanidade a serem internamente confrontados, fazendo das respostas, interpretações memoravelmente desconfortáveis.
