Filme espanhol da Netflix agride duramente o modo social ao qual estamos acostumados a viver.
Já dizia a wikipédia que em sociologia, sociedade é o conjunto de pessoas que compartilham propósitos, gostos, preocupações e costumes, e que interagem entre si constituindo uma comunidade. Longe de ser didático ao empregar o tema em yseu filme, o diretor espanhol Galder Gaztelu-Urrutia opta por ser emblemático por mais que exaustivamente recorde ao telespectador, “a mensagem” que seus idealizadores (David Desola e Pedro Rivero) queiram passar.
O filme é o novo o maior fenômeno de todos os tempos do último mês na gigante do streaming e vem gerando buzz e discussões acaloradas na web. A trama se passa em uma espécie de prisão vertical segmentada por níveis (andares) do qual se dispõem dois “colegas” de nível, que compartilham suas existências e sua única refeição diária através de uma plataforma que distribuí um único banquete servido coletivamente de cima para baixo. O sistema é intitulado de CVA (Centro Vertical de Autogestão) e seu grande problema aparente, é que as pessoas dos andares superiores comem mais do que o necessário, pois a cada ciclo que dura cerca de 30 dias, um sorteio randômico as realoca para outros níveis, de forma que nunca se sabe se terão o que comer no próximo mês, já que a comida nunca chega aos níveis mais inferiores. O paralelo com nossa sociedade capitalista é evidente, de forma micro, somos apresentados aos nossos maiores problemas sociais, já fora do poço, no macro, nossos impulsos egocêntricos de consumo desenfreado, estúpido e sem pudor são explicitados magistralmente como no diálogo das facas Samurai Plus, entre Trimagasi (um detento experiente do CVA) e nosso protagonista, Goreng, o ávido leitor de Dom Quixote nas horas vagas.
Como funciona o CVA? Qual é o comportamento padrão dos detentos? Alimentação das sobras de níveis superiores? São todas questões respondidas por intermédio do sonoro “óbvio” nas falas de Trimagasi, ante os questionamentos do recém-chegado Goreng. A construção das regras desse mundo, é bem cercada de consequências punitivas de violência gráfica e explícita nas cenas, mas nada gratuito, pois sabemos que isso é uma terça-feira comum na vida de muita gente que vive abaixo do limite da miséria nos centros das grandes metrópoles capitalistas do mundo.
Os diálogos são brilhantes, em certa passagem se discute a ineficácia da comunicação com os níveis, tanto superior quanto inferior do qual se chega à conclusão de que apenas ameaças baseadas em “escrotices” são o código linguístico vigente nesse hostil ambiente. É inevitável não rir desconfortavelmente ao entender o sentido não literal da impossibilidade “de se cagar para cima” na fala de Goreng.
Ao decorrer do longa, vamos nos sentindo cada vez mais impelidos aos mistérios das profundezas do Poço. O incômodo com as práticas canibalistas, a violência quase que selvagem em busca de sobrevivência, vai nos sufocando, nos colocando nos níveis mais abaixo de forma homeopática e nos gera um sentimento claustrofóbico desprovido de ética e moral. Essa opressão é um terreno fértil para insurreição, e neste ponto o filme muito se assemelha a uma obra subestimada do agora premiado diretor Bong Joon-ho chamada O Expresso do Amanhã (disponível no Amazon Prime Vídeo), e que consequentemente é adaptada de um quadrinho francês intitulado O Perfura Neve dos franceses Lob, Rochette e Le Grand publicado aqui pela editora Aleph.
Os dois longas se assemelham nessa crítica ferrenha a sociedade, nas ações que possibilitam a quebra do sistema, no modo com o qual se lida com a opressão, porém, o que os diferencia é o final. Enquanto o filme de Bong Joon-ho se auto-impõe uma camada mais complexa de gênesis divina para criação de um paradoxo transcendental a humanidade, O Poço por sua vez, segue o simples “Óbvio” de sua mensagem. A quebra da quarta parede te coloca como parte desse sistema e a busca pelo sentido ou explicação do final do filme não estará em mirabolantes teorias, a mensagem é exatamente essa, a óbvia degradação da sociedade capitalista de dentro do fundo de um Poço sem fim.

Gostou da crítica e se interessou pela obra O Perfura Neve da Editora Aleph mencionada no texto? Comprando pelo nosso link, você nos ajuda em uma pequena comissão junto a Amazon e ainda mantém a chama do blog acesa para outras análises e recomendações. Desde já um muito obrigado e boa leitura!