Como o distanciamento das pessoas em tempos de Corona Vírus remetem a filosofia de vida de Shinji Ikari, protagonista do anime cult dos anos 90.
O Corona Vírus e a política de auto isolamento estão afetando profundamente nossa liberdade, nossa convivência com pessoas e principalmente nosso psicológico. As hashtags “Fiquem em Casa”, as etiquetas de convívio e relação com o próximo e todo o pack sobrevivência que a pandemia do Covid-19 está nos trazendo, tem uma verdadeira iminência de proto apocalipse e preocupação com o rumo da humanidade. Era inconcebível até pouco tempo imaginarmos que em nossa realidade uma ameaça não humana fosse capaz de aniquilar vidas de forma tão massiva. É nesse ponto que gostaria de fazer um paralelo com o maior anime de todos os tempos (segundo eu mesmo) que se chama Neon Genesis Evangelion.

Para quem não conhece, recomendamos fortemente, pois tanto o anime clássico, quanto os filmes estão disponíveis na Netflix, porém aconselha-se cautela, pois assim como Black Mirror, alguns dos episódios podem desgraçar sua cabeça. Sua mitologia envolve ciências x religião, filosofia, existencialismo e até o misticismo da Kabbalah, corra e vá assistir imediatamente.
A animação foi um marco na década de 90, com status de cult, onde a mente brilhante de seu criador (o gênio Hideaki Anno), resolveu submergir de sua “condição psicológica depressiva” para se comunicar diretamente com todos os hikikomoris (pessoa solitária que se afasta de todo o contato social) do Japão e do mundo.
De acordo com o anime, após um evento cataclísmico acabar com uma grande parte da população da Terra, os chamados anjos (monstros colossais amorfos) começaram a surgir para subjugar o restante dos sobreviventes e cabe a uma organização paramilitar chamada NERV garantir a manutenção de vida do planeta designando adolescentes a pilotar seus “Robôs” gigantes.
Mas o que diabos isso tem a ver com o momento que estamos vivendo?
Vamos chegar lá, antes de prosseguir, é importante salientar que Evangelion, mais do que batalhas entre monstros x robôs e uma trama costurada de informações abstratas, trata na verdade das complexas relações entre as personagens e como estas se desenvolvem a partir de seus próprios pontos de vista. Dito isso, vamos falar especificamente do protagonista, um típico adolescente japonês chamado Shinji Ikari, piloto da unidade 01.
O garoto de 14 anos é um poço de insegurança devido ao trauma de ter sido abandonado pelo pai após a morte da mãe, possui um medo acentuadíssimo de se relacionar com pessoas em decorrência da ausência de seus progenitores e sofre o que o anime caracteriza como “o dilema do porco espinho”, que basicamente tenta explicar a necessidade do animal de se aquecer no frio com o mesmo de sua espécie, porém ao se aproximar, acaba se machucando, de forma que ele cria um paradoxo de frio e solidão ao se distanciar ou dor mútua ao tentar se aquecer com outro porco espinho. Dessa metáfora, Shinji molda seu próprio estilo de viver e sobreviver, sua insegurança passa por evitar o contato social pelo medo de se ferir, por mais frio e solitário que ele “deseja” ser.
Essa filosofia de vida é o mote velado que norteia o anime, se questiona como Shinji constrói sua realidade com base nas interposições de terceiros, sobre como ele consegue viver se privando de suas verdadeiras vontades e sendo submisso as decisões que outros tomam por ele. A resposta dentro da animação não é simples, clara e nem fácil de ser digerida, mas podemos dizer com absoluta certeza que ele, assim como você ou eu, não somos seres concebidos para viver sem os espelhos e validações que refletimos, de forma que somos incompletos sem a referência do outro.
Esse momento que estamos vivenciando, nos aproxima de um tipo Shinji Ikari que reside dentro de cada um de nós, um ser triste e solitário que roga por um mínimo de contato e afeto genuíno por parte das pessoas de que gostamos. Todos estamos descobrindo o quanto é difícil se situar em um mundo restrito de relações de proximidade e auto isolamento físico, presos em nossa própria concepção de realidade, questionando todo esse movimento de confinamento e as perguntas decorrentes da situação. Qual a origem/sentido dessa aparente “punição” biológica? O meu isolamento está contribuindo para a saúde de outras pessoas e do planeta? Por que o meu semelhante em tempos de pandemia viral insiste em se aproximar com seus espinhos causando uma possível dor a si mesmo e a mim? Todas são perguntas válidas e as respostas talvez não tenham muito a ver com você, e sim sobre todos nós enquanto um ser único e consciente que ressoa desejos de completude.
Shinji Ikari se aceita ao fim da obra, ele se desnuda de seus defeitos e fraquezas e estabelece a ordem vigente de sua própria realidade como “uma fera que gritou EU no coração do mundo”. De fato, ainda estamos longe de concluir nossa missão de autoconhecimento e propósito nesse período de isolamento, pois o Corona Vírus está logo ali, seja invisivelmente do lado de fora da sua janela, seja infelizmente parasitando algum amigo, conhecido ou familiar, quase que cumprindo o papel de anjo exterminador do anime à espreita de sua vulnerabilidade inerente de ser humano. O que nos alenta é saber que assim como Shinji transcendeu sua solidão, nosso despertar poderá ser em uma nova era, uma era de coesão uníssona de consciências, de empatia mútua e do amor necessário em tempos de ódio. A esperança é o desejo de vitória nessa batalha, acreditando que nos fortaleceremos uma vez mais antes do fim desse longo, escuro, dolorido mas necessário isolamento.

Muito bom!
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